8.5.12

AS QUATRO NOITES DA SALVAÇÃO - 2ª NOITE - A NOITE DE ABRAÃO OU DA FÉ



Criador: Arcebispo - Bruno Forte - Presidente da comissão episcopal para a doutrina da fé

A NOITE DE ABRAÃO OU DA FÉ - SEGUNDA NOITE

A segunda noite foi quando o Senhor se manifestou a Abraão que já tinha cem anos, enquanto Sara sua esposa tinha noventa, para que se cumprisse o que diz a Escritura: 
A verdade é que Abraão gera com a idade de cem anos e Sara deu à luz com noventa. 
Isaac tinha trinta e sete anos, quando foi oferecido sobre o altar. Os céus baixaram-se e desceram e Isaac contemplou as suas perfeições e seus olhos ficaram deslumbrados com as suas perfeições. 
E Ele chamou-lhe: noite segunda (qiddush da segunda taça).
Se a primeira das quatro noites da salvação é a da humildade de Deus e do homem que lhe corresponde no amor, a segunda é a da fé, inseparavelmente ligada àquele que é o pai dos crentes: Abraão. 
Quem é Abraão? Qual foi a sua história, qual o seu caminho de fé? Os textos onde podemos buscar a resposta para estas perguntas são sobretudo dois: os capítulos 12 e 22 do livro do Gênesis, a vocação de Abraão e a “´aqedah” (ou atamento”) de Isaac, isto é, a cena do sacrifício no monte Moriá. 
Abordemo-los, interrogando-nos previamente: qual é a noite em que Abraão se encontra quando é chamado por Deus?
Abraão não é um super-homem; pelo contrário, é um homem com as suas contradições, as suas ambiguidades, as suas máscaras, como quando no Egito apresenta a sua belíssima Sara, sua esposa, como sua irmã para não ser objeto de
possíveis golpes de quem pretendesse tomá-la. 
Sobretudo, Abraão tem um medo interior que é, ao mesmo tempo, uma grande dor: a ideia de morrer sem descendência ! Nos tempos de Abraão não existia a fé na imortalidade pessoal: segundo o juízo comum, a vida era a que se vive neste mundo, encerrada entre o grito do nascimento e o grito da morte. 
Portanto, tudo o que um homem podia dar ou receber, devia dá-lo ou recebê-lo nos anos de sua vida mortal, Abraão foi, com toda a certeza, influenciado pela mentalidade de seu tempo: para ele, ter um filho era uma questão de vida ou de morte.
Em suma, o pai dos crentes, alguém absolutamente semelhante a nós, com as fragilidades próprias da condição humana, com as incertezas, as dúvidas e as interrogações que todos temos. 
O que aconteceu a este homem para mudar-lhe tanto a vida para sempre? 
Deus chama-o: na verdade, são duas as chamadas, relatadas respectivamente em Gênesis 12 e em Gênesis 22. 
No primeiro texto, o Senhor pede a Abraão que deixe a sua terra, as suas certezas; deixar as suas seguranças custa sempre e custa ainda mais quando já se tem muitos anos e hábitos enraizados, quando se está muito ligado às certezas pessoais, como o cão ao seu pequeno osso. 
Na verdade, todos nós amamos muito a nossa noite!

No entanto, Deus promete-lhe algo de muito bom: a plenitude da benção, a descendência numerosa como as estrelas do céu e como a areia que há nas praias do mar. 


A quem não tinha filhos, tal promessa parece um sonho: para Abraão, Isaac, o filho que lhe será dado, será verdadeiramente “o sorriso de Deus”, como significa o seu nome! 

A chamada é demasiado bela para não ser aceita. Por isso, Abraão decide obedecer à palavra de Deus e parte, deixando a sua terra, em direção à terra prometida, em direção ao Isaac do seu coração. 

Deste modo, porém, Abraão, não desceu ao fundo da noite para aproximar-se da aurora: na realidade, ele respondeu a um Deus que lhe dava exatamente o que ele queria. 

A chamada de Gênesis 12 é a projeção do desejo do coração, em cuja perspectiva até as maiores renúncias se tornam aceitáveis, porque, então, valem o sacrifício. 

Se tudo parasse aqui, Abraão não seria o pai dos crentes nem a sua noite seria a segunda das quatro noites da salvação: para que se tenha fé, é necessário que se mude profundamente o coração, que seja marcado para sempre, com algo que nos subverta a vida e nos leve, somente perante Deus, a viver a noite mais escura, a oferta mais difícil, o maior dom e o amor mais profundo. 

É isto que acontece em Gênesis 22, 1-18, o segundo chamamento de Abraão, aquele que, na tradição hebraica, é chamado “´aqedáh” ou “atamento” de Isaac. 

Antes de tudo é a ordem de Deus: “ Pega no teu filho, no teu único filho, a quem tanto amas, Isaac, e vai à região de Moriá, onde o oferecerás em holocausto, num dos montes que Eu te indicar”.

Agora, Abraão entra na noite mais escura: já não consegue dizer mais nada. Cala-se. O Deus que o chamou, prometendo-lhe tudo o que ele desejava no mais profundo do seu coração e lhe deu a alegria do seu Isaac, este mesmo Deus pede-lhe que se prive de Isaac. 

É de enlouquecer! Como é possível que Deus negue as promessas de Deus?

Como é possível que o mesmo Deus que o levou a deixar tudo para lhe dar tudo segundo o seu desejo, lhe exija agora que sacrifique tudo, mais, que sacrifique a única coisa que para ele verdadeiramente conta na vida, o filho, o amado do seu coração? 

É esta a noite de fé de Abraão: é a derrota de Deus, é o oferecimento inquietante de um Deus que parece negar-se a si mesmo, que nos tira o que nos tinha dado: como é possível?

Soren Kierkegaard , ao comentar este episódio bíblico, no belíssimo livro intitulado Temor e Tremor, imagina que, quando Isaac pergunta “onde está a vítima para o holocausto?” e o pai lhe responde “Deus proverá quanto à vítima para o holocausto, meu filho”, pela mente de Abraão perpassa uma oração silenciosa: “Senhor do céu, é melhor que
ele me julgue um monstro, a que perca a fé em ti.” 

Abraão compreende que se dissesse a Isaac que Deus quer sacrificá-lo, o rapaz nunca mais poderia crer em Deus. 

Então, prefere que o filho pense que o pai é um monstro, em vez de perder a fé no Altíssimo. 

Abraão ama Deus de tal maneira que não somente está pronto a sacrificar-lhe o amado do seu coração, mas também a ser julgado um monstro pelo filho, a fim de que este não perca a fé.
Kierkegaard acrescenta aqui uma reflexão fulgurante: ”Uma pessoa é tão grande quanto as suas expectativas; uma torna-se grande esperando o possível, outra esperando o eterno; mas quem espera o impossível torna-se maior que todos.” 

Abraão aposta na possibilidade impossível de Deus sobre o acontecimento, isto é, aposta em que o mesmo Deus, que deu e que tirou, é o Deus em quem tem de confiar. 

Deus tem sempre uma alternativa impossível.

Por isso, Abraão confia em Deus, mesmo no tempo do silêncio de Deus. Esta é a sua grandeza: confiar no Senhor não só quando tudo corre bem, mas sempre, mesmo na noite escura, quando Ele parece querer tirar-lhe o Isaac do seu coração. 

Abraão deixa de raciocinar em termos de cálculo humano: “do ut des”, dou isto e receberei aquilo. 

Abraão crê e abandona-se perdidamente, confia e confia-se... É ainda Kierkegaard quem anota: “Deus é aquele que exige amor absoluto,” Não se ama a Deus quando se ama as consolações de Deus; ama-se a Deus, quando o amamos, queira ele o que quiser para nós.

Para o amor, nenhum sacrifício é demasiado grande; de fato, só se pode sacrificar o que se ama. 

Sacrificar o que não se ama é até demasiado fácil: o difícil é oferecer a Deus o amor verdadeiro da nossa vida! Diz Kierkegaard: “Abraão ama Isaac com toda a alma e quando Deus lho pede, ama-o, se possível, ainda mais; só assim pode fazer dele um
sacrifício.” 

Abraão só pode sacrificar Isaac porque o ama infinitamente. A Deus não se oferece o refugo do coração, pois só se pode oferecer-lhe o amor maior.

A verdade é que só entramos na noite luminosa da fé quando se oferece a Deus o amado do nosso coração: cada um de nós tem um Isaac do seu coração. 

Fé é reconhecer este Isaac e estar pronto a colocá-lo sobre o altar do sacrifício, no
dia em que Deus quiser. Crer é oferecer o Isaac do seu coração, o único, o amado, oferecê-lo a Deus, porque só Ele é digno desta oferta e deve ser amado assim. Morrer para nascer. 

Perder-se para encontrar-se. 

Abraão morre para os seus sonhos, para os seus desejos, porque está pronto a dar a Deus o seu Isaac, a amar a Deus mais do que a todas as consolações de Deus, a confiar-se perdidamente a Ele. 

Agora Deus pode dizer-lhe: “Sei agora que, na verdade, temes a Deus” (Gn 22,12), porque Abraão ofereceu o Isaac do seu coração: “Sei agora que, na
verdade, temes a Deus, visto não me teres recusado o teu único filho” (Ibidem).

A fé consiste em: crer na possibilidade impossível de Deus, confiar em Deus, apesar do silêncio de Deus, não obstante a noite escura das suas exigências impossíveis! 

O homem de fé sabe que Deus é Deus e que é preciso confiar em Deus sem condições. 

Na verdade, também Deus vive a sua noite por amor aos homens, Também Ele como Abraão oferecerá por nós o Isaac de seu coração.
Afirma Orígenes: “Deus compete magnificamente em generosidade com os homens: Abraão ofereceu a Deus um filho mortal sem que ele morresse; Deus entregou à morte o Filho imortal pelos homens” (Homilia in Genesim, 8).

Portanto, o sacrifício de Isaac acaba por ser realizado plenamente por Jesus e Abraão – assumido como figura do Pai celeste que o sacrifica – pode ser, de direito, considerado o nosso pai na fé, ele que soube crer contra toda a evidência e esperar contra toda a esperança.

Abraão torna-se o Pai na fé para muitos povos, porque amou mais a Deus do que as promessas de Deus: pobre de si, rico de Deus, será rico de uma multidão de filhos, que serão todos aqueles que, ao longo história, haverão de crer na fidelidade de Deus, mesmo no tempo da aparente derrota de Deus ou no tempo do seu silêncio. 
Precisamente por isso, Abraão interpela-nos, a nós que somos seus filhos na fé: creio em Deus porque realiza os desejos do meu coração ou creio em Deus porque Deus é Deus? Amo-o pelas suas consolações ou amo-o porque é Deus, o meu Deus? 
ainda: estou pronto a oferecer-lhe o Isaac do meu coração, a colocá-lo sobre o altar do sacrifício, amando a Deus mais do que à recompensa e à consolação de Deus? 
A Deus não podemos oferecer apenas alguma coisa de nós próprios; a Deus, devemos oferecer-nos a nós mesmos. Então, poderemos dizer que já o amamos e continuamos a amá-lo; então, poderemos viver da fé. Como Abraão, o nosso pai na fé.
E é com a voz de um dos filhos de Abraão que gostaria de concluir esta meditação sobre a segunda noite, a noite da fé.
Trata-se de uma página conhecida como a Carta do Judeu do Gueto de Varsóvia. Embora já se tenha demonstrado que foi escrita noutro lugar, ela mostra bem o que é a fé dos filhos de Abraão e como ela arde na noite do sacrifício. 
texto apresenta o ambiente de 1943: o gueto de Varsóvia está cercado e em chamas. Um após outro, caem todos os seus defensores. 
Numa das últimas casas em que ainda se resiste está presente um filho de Israel. 
E mete numa garrafa vazia um escrito com as suas últimas palavras: “Algo de muito surpreendente acontece hoje no mundo. 
Este é o tempo em que o Onipotente afasta o seu rosto daqueles que lhe suplicam. Deus escondeu ao mundo a sua face; por isso, os homens estão abandonados às suas piores paixões selvagens.
Num tempo em que esta paixões dominam o mundo, é natural que as primeiras vítimas sejam precisamente aqueles que conservaram vivo o sentido do divino e do puro. 
Isto pode não ser consolador, mas o destino do nosso povo é estabelecido não
por leis terrenas, mas por leis ultraterrenas. 
Aquele que empenha a sua fé nestes acontecimentos deve ver neles uma parte da
grandiosa realização dos planos divinos, perante os quais as tragédias humanas não têm nenhum significado. 
Não tentarei salvar-me nem tentarei fugir daqui. Meterei esta carta na garrafa vazia e escondê-la-ei entre as pedras desta janela entaipada até meio. 
Se, mais tarde, alguém a encontrar, talvez possa compreender os sentimentos de um judeu, de um destes milhões de judeus que foram mortos, um judeu abandonado por Deus em quem acreditava muito intensamente.
Creio no Deus de Israel, embora ele tenha feito de tudo para arrasar a minha fé nele. As minhas relações com Ele já não são as de um servo diante do seu senhor, mas as de um discípulo perante o seu mestre. 
Creio nas suas leis, amo-o. E, embora me tenha enganado em relação a ela, continuarei a adorar a sua Lei. 
Dizes que pecamos: certamente que pecamos e também admito que sejamos punidos por isso. 
Contudo, gostaria que me dissesses se há algum pecado na terra que merece tal castigo.
Digo-te isto, ó meu Deus, porque creio em ti mais do que nunca, porque sei que és o meu Deus e não Deus daqueles, cujos atos são o fruto horrível da sua impiedade militante.
Não posso louvar-te pelos atos que toleras, mas bendigo-te e louvo-te pela tua Majestade que inspira temor. 
A tua Majestade deve ser verdadeiramente imensa para que tudo o que acontece neste tempo não te impressione. 
Agora, a morte já não pode  esperar mais. Tenho de deixar de escrever. Minuto a minuto, o tiro das espingardas, nos andares de cima, torna-se cada vez mais fraco. 
Neste momento, caem os últimos defensores do nosso refúgio e, com eles, cai a grande, a bela Varsóvia judaica que teme a Deus. 
O Sol põe-se e eu te agradeço, ó Deus, porque nunca mais o verei surgir. Raios vermelhos chovem da janela: o pedacinho de céu, que posso ver, é flamejante e fluído como um fluxo de sangue. 
Dentro de uma hora, no máximo, estarei junto da minha mulher, dos meus filhos e dos melhores filhos do meu povo num mundo melhor, em que as dúvidas já não dominarão e Deus será o único soberano.
Morro sereno, mas não satisfeito; como um homem abatido, mas não desesperado; crente, mas não suplicante; amando a Deus,mas sem dizer cegamente: Amém. Segui a Deus, mesmo quando Ele me repeliu. 
Cumpri o seu mandamento mesmo quando, para premiar a minha observância, Ele me castigava. 
Amei-o, amava-o e amo-o ainda, embora me tenha abaixado até ao chão, me tenha torturado até à morte, me tenha reduzido à vergonha e ao escárnio. Podes torturar-me até a morte, acreditarei sempre em ti; amar-te-ei sempre, mesmo que não queiras. 
E estas são as minhas últimas palavras, meu Deus de cólera: Não conseguirás fazer com que te renegue.
Tentaste de tudo para fazer-me cair na dúvida, mas eu morro como vivi: numa fé inabalável em ti. 
Louvado seja o Deus dos mortos, o Deus da vingança, o Deus da verdade e da fé que imediatamente mostrará os fundamentos com a sua voz onipotente. 
Shemá Israel, Adonai Elohenu, Adonai echad! Escuta, Israel, o Senhor é nosso Deus, o Senhor é um!”