29.4.12

AS QUATRO NOITES DA SALVAÇÃO - 1ª NOITE

Criador: Arcebispo - Bruno Forte - Presidente da comissão episcopal para a doutrina da fé

A NOITE DA CRIAÇÃO OU DO AMOR HUMILDE - PRIMEIRA NOITE

Na realidade, no livro dos memoriais estão escritas quatro noites. A primeira noite foi quando o Senhor se manifestou no mundo para criá-lo: o mundo era deserto e vazio, e a treva estendia-se sobre a superfície do abismo, mas o Verbo do Senhor era a luz e iluminava.
E Ele chamou-lhe: a noite primeira (qiddush da primeira taça).

A primeira noite da salvação é a que precede a primeira manhã do mundo:
“ No princípio, quando Deus criou os céus e a terra, a terra era informe e vazia, as trevas cobriam o abismo e o espírito de Deus movia-se sobre a superfície das águas. Deus disse: “ Faça-se a luz.” E a luz foi feita.

Deus viu que a luz era boa e separou a luz das trevas. Deus chamou dia à luz, e às trevas, noite. Assim, surgiu a tarde e, em seguida, a manhã: foi o primeiro dia” (Gn 1,1-5).

Esta primeira noite é o pressuposto essencial de todas as outras, porque se a obra da criação não tivesse existido, nem sequer estaríamos a celebrar a Páscoa.

No entanto, é a partir da experiência da salvação que a fé do povo eleito também escruta o mistério do início [do Universo]: o relato bíblico da criação é uma espécie de “profecia retrospectiva”, uma pré-história da Aliança que, segundo o desígnio de Deus, deverá vir.
Portanto, o Salvador é o Criador: Aquele que salva com as suas maravilhas é aquele que cria com o poder do seu amor irradiante.
E, como a razão da salvação operada por Ele na história é o amor, assim também o motivo do primeiro princípio por ele querido não pôde ser senão o amor: o amor humilde do Deus altíssimo.

Esta convicção está na base da doutrina do “tzimtzum” ou “contracção” divina, muito querida da mística hebraica: Isaac Luria, o cabalista que, na segunda metade do séc. XVI, pôs no centro do seu ensinamento a imagem da “contracção” divina, na pequena cidade de Safed, na Alta Galileia, concebeu o ato criador como um generoso fazer espaço em si mesmo da parte de Deus para a criatura que, de outro modo, não teria podido existir.

Onde poderia morar o universo, senão no seio de Deus que se contraiu para hospedar o mundo de modo análogo a uma mãe que acolhe uma nova vida no seu seio?

“Tzimtzum” é o ato em que o Imenso se contrai, se faz pequeno para permitir que a criatura exista diante do Outro na liberdade; por isso, o “tzimtzum” do Eterno é o outro nome do seu amor aos homens, expressão daquela misericórdia que em hebraico, significativamente, equivale à idéia de vísceras maternas” (rachamim) e que também é respeito e humildade do Criador diante da criatura.

A invocação de São Francisco “Tu és a Humildade” (Louvores ao Deus Altíssimo) é um exemplo de como esta mensagem passa do Judaísmo para o mais profundo da alma cristã, pela qual a confirmação suprema da autolimitação de Deus para dar espaço à fragilidade e à pequenez das medidas humanas está precisamente na quenose do Verbo:
“Tu és Santo, Senhor Deus único, que fazes coisas estupendas. Tu és forte. Tu és grande. Tu és o Altíssimo. Tu és o Rei onipotente. Tu és o Pai Santo, Rei do céu e da terra. Tu és trino e uno, Senhor Deus dos deuses. Tu és o bem, todo o bem, o sumo bem, senhor Deus vivo e verdadeiro. Tu és amor, caridade. Tu és sabedoria. Tu és humildade.” (Lodi di Dio Altissimo, in Fonti Franciscane, Pádua-Assis, 1980, n.261).

Este “êxtase” do divino, este “estar fora” do Infinito no finito por força do amor humilde é, ao mesmo tempo, o apelo mais alto que se pode conceber no êxtase do mundo, isto é, aquela “transgressão” em direção ao Mistério, que é a vocação de tudo o que existe: a amor das criaturas é chamado a corresponder à iniciativa divina do amor; e, assim como o primeiro Amor é humilde, assim também este segundo amor deve ser humildade.

Uma vez mais, é a tradição hebraica que no-lo explica como um saboroso conto rabínico.
As lendas dos Hebreus falam sobre a humildade da letra “aleph”, a mais etérea e volátil de todas as letras do alfabeto hebraico, tão modesta que nem sequer tem um som próprio, mas, de quando em quando, nela se apoiam as vogais que precisam dela.

Portanto, quando o Eterno quis criar o mundo, chamou perante si o alfabeto, para perguntar qual das suas letras quereria ser a primeira dos escritos divinos da criação. Como acontece facilmente entre os humanos, também as letras competiram para levantar a mão, pretendendo cada uma delas ser a primeira e, com isso, ser digna de inaugurar o mundo.

O “aleph” foi a única que se absteve, não ousando sequer levantar a mão; por isso, foi escolhido o “beth”, de tal modo que a primeira palavra da Escritura é “bereshit”, “ in principio” [no principio], e a primeira letra é o “beth”, com que começa toda a bênção do Santo (“berakah”).

Agora, esta letra – que corresponde ao nosso “b” – escreve-se à maneira de um quadrado aberto para o lado esquerdo, isto é, na direção em que um hebreu prossegue a escrita: ela parece como que incompleta, uma evocação eterna do cumprimento, um desejo, uma evocação eterna do cumprimento, um desejo, uma sede.
Precisamente por isso, segundo os Rabinos, o “beth” da primeira palavra da Escritura demonstra que a obra da criação não é conclusão, mas início; não é cumprimento, mas busca e espera.

A lenda continua, narrando como o Eterno, admirado com a humildade do “aleph”, quis recompensá-lo.
E foi assim que, na hora de se revelar a si mesmo e de dar ao mundo as Dez Palavras, o Decálogo da sua busca de amor pelos homens, foi ao “aleph” que coube o primeiro lugar: “ Eu sou o Senhor teu Deus” – a palavra do eterno fundamento invisível que vem assomar ao tempo e estabelecer a aliança entre o Deus vivo e o seu povo – de fato começa com “eu”, em hebraico “anochí” , cuja inicial é precisamente o “aleph”(cf.I.Ginzberg, Le leggende degli Ebrei – I: Dalla creazione al diluvio, direção de E. Loewenthal, Milão, Adelphi, 1995,pp.27s).

Portanto, a história do homem e do mundo começa com o” aleph” e, por isso, está sempre aberta em direção ao desenvolvimento e aprofundamento: a verdade de Deus, porém, é – nos oferecida plenamente só a partir daquele “aleph”,com que começa a palavra da sua soberana autocomunicação. Então, querendo reconhecer no “beth” a metáfora da noite do mundo é na humildade do “aleph” que se deixa entrever a condição necessária para que a criatura acolha a luz da aurora.

À humildade do Deus criador deve corresponder o silêncio humilde do homem, a escuta hospitaleira aberta a receber o dom que vem do alto e que faz da escuridão do nosso coração o espaço da luz.

É a humildade que ilumina a noite e a torna início de luz: verdadeiramente, “ não é o conhecimento que ilumina o mistério, é o mistério que ilumina o conhecimento” (Pavel Evdokimov).

Todo o conhecimento que liberta e salva, neste mundo, começa no abismo do coração humano que procura, mas só se cumpre verdadeiramente quando se deixa atingir humildemente pela luz do seu Deus.
Portanto, a noite primigénia revela a dupla humildade: a humildade de Deus criador que não hesita em autolimitar-se para dar espaço à criatura, tornando-a livre perante si; e humildade da criatura que é a única resposta menos inadequada ao amor infinito.

Ora, humildade não é só não ter pretensões, como o “aleph”, mas é tornar-se espaço aberto, acolhimento do outro, sustento do pobre, noite sequiosa de aurora que se torna invocação e expectativa/espera fidelíssima.

Então, a taça da primeira noite deixa-nos a grande interrogação:

sou humilde?
Ponho-me em silêncio diante do grande mistério do mundo?
Aceito estar e perseverar na doce escuta da Palavra da vida que vem das nascentes eternas? Reconheço-me nada para deixar-me amar como sou pelo Humilde que, por amor quis criar-me?
Esforço-me por ser livre em relação a mim mesmo, livre em relação às coisas e aos outros, para pertencer unicamente a Deus e para deixar-me conduzir por Ele ao longo dos caminhos da aliança para com Ele edificar o mundo e a vida segundo o seu projeto de amor?

Escutemos o convite à humildade que nos vem de Inácio de Loyola, o grande mestre dos exercícios espirituais vividos como via para pôr ordem na nossa vida sob o olhar de Deus: ao mostrar-nos três graus de humildade, faz-nos compreender que a humildade é uma escada em que devemos subir cada vez mais alto para, todos os dias, participar mais profundamente na obra da criação e da salvação:
1- O primeiro modo de humildade [...] consiste em obedecer em tudo à lei de Deus, nosso Senhor [...].
2- O segundo é não querer nem ambicionar ser rico, mas pobre; [não] ser honrado, mas desprezado; não desejar uma vida longa, mas breve [...].
3- A terceira é humildade perfeitíssima que só tenho quando, [...] para imitar e assemelhar-me mais concretamente a Cristo nosso Senhor, eu quiser e preferir a pobreza com Cristo à riqueza, os opróbios com Cristo, que está repleto deles, às honras, e desejar ser considerado estúpido e louco por Cristo que foi o primeiro a ser considerado assim, em vez de sábio e prudente neste mundo” (Exercícios Espirituais, nn.165-167).



Oremos para pedir o dom desta humildade – dom do Deus altíssimo – com as palavras do mesmo Santo Inácio de Loyola:
“Eterno Senhor de todas as coisas, faço a minha oferta com o vosso favor e ajuda, na presença da vossa bondade infinita e diante da vossa Mãe gloriosa e de todos os santos e santas da corte celeste, que eu quero e desejo e é minha firme decisão, para que seja para maior serviço vosso e maior louvor, imitar-vos em sofrer todas as ofensas e todo o vitupério e toda a pobreza, tanto material como espiritual, se a vossa Majestade quiser eleger-me e receber-me
nessa vida e estado. Amem! (Ibidem, n. 98)